terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Valkaria,nossa deusa




"Sua mão macia deslizava pelo mármore da sacada. Nenhuma rachadura, nenhuma falha.
Nenhuma imperfeição, por mínima que fosse. A mesma exatidão poderia ser encontrada em cada
parede, aposento ou objeto naquele palácio. A mesma simetria implacável.
E não apenas no palácio, mas também no mundo à volta. Ao longe, uma cadeia de montanhas
exibia picos com a mesma altura, a intervalos iguais. No céu de azul uniforme, nuvens
idênticas corriam em velocidade constante e formações rígidas. Rios de margens retas e curvas
exatas cortavam planícies de formas geométricas. Mesmo as árvores e suas folhas cresciam seguindo
padrões rigorosos, exatos.
Contra o cenário correto de Ordine, sua forma esbelta e seminua parecia ainda mais
deslocada, mais imperfeita. Espirais lilases dançando sem rumo sobre a pele rosada, imitando o
movimento dos cabelos de mesma cor. Mesmo absolutamente imóvel, mesmo observando a
paisagem serena, ela parecia inquieta.
Khalmyr nunca entendeu o que a fazia tão linda. Claro, as deusas sempre são belas, são a
perfeição — e perfeição, ele bem sabia, é o objetivo final de todas as coisas. Glórienn era a
perfeição entre os elfos. Wynna era a perfeição entre os gênios e fadas. Allihanna entre os seres da
natureza, e Tenebra entre suas criaturas da noite. Todas perfeitas. Todas belas.
Como alguém podia ser bela por sua imperfeição? Por suas falhas? Seus defeitos?
Como sua raça eleita poderia desejar alcançá-la, se não havia um padrão a alcançar? Como
seguir as regras de alguém, se não há regras a seguir? Tal anarquia, em uma criatura supostamente
igual a ele, perturbava Khalmyr profundamente.
Mas lá estava ela. Nunca a mesma, mas sempre ela. Não o caos mutante e insuportável de
Nimb, mas ainda assim diferente a cada olhar, a cada momento.
O Deus da Justiça chegou mais perto, sua armadura exalando música metálica ao mover-se.
Cruzou os braços. De todos no Panteão, era o único que parecia mais gentil de braços cruzados.
— Você sabia que seria apanhada. Sabia que seria castigada.
— Eu sabia que isso poderia acontecer — Valkaria respondeu, sem tirar os olhos da paisagem.
— Achou que poderia conseguir? Achou que vocês três tomariam o Panteão?
— Havia uma chance.
— Aqui não há “chances” — grunhiu Khamlyr, com evidente desprezo pela palavra.
— Ahn, perdão. Vivo esquecendo.
Ela virou-se e sentou na murada. Fitou o irmão deus com olhos que mudavam constantemente
de cor.
— Como é estar sempre certo? — disse, em tom de acusação. — Jamais ter dúvidas sobre
o que se deseja? Jamais chorar por um erro que cometeu, ou nunca lamentar algo que não fez?
Como consegue?
— Você gostaria de ser como eu? Por isso tentou usurpar minha liderança?
— Não! — ela gritou, então acrescentou insegura. — Não é nada disso...
— Então por quê?
Silêncio. Uma brisa de temperatura constante soprou. Valkaria não sentiu frio, mas mesmo
assim segurou os próprios ombros.
— Você conhece a história do sapo e o escorpião?
Khalmyr conhecia. Mas deixou a deusa falar assim mesmo.
— O escorpião queria atravessar o rio. Pediu ao sapo para fazer a travessia em suas costas.
O sapo tinha medo de ser picado, mas pensou: se ele me matar, vou afundar e ele morrerá também.
Certo de que não seria atacado, o sapo concordou.
“Então, no meio do caminho, o escorpião picou o sapo. — Por quê?! — ele perguntou,
enquanto o veneno agia e ele morria — agora vamos os dois morrer! Por que fez isso?”
“E o escorpião respondeu: porque é a minha natureza.”
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Khalmyr não precisava da parábola para entender. Ela era a Deusa da Ambição. A deusa de
uma força, uma emoção, que impele todo ser senciente a alcançar o inalcançável. Uma qualidade
que, se nem sempre pode ser admirada, deve entretanto ser respeitada. Talvez tanto quanto a
ordem, o bem ou a vida.
Valkaria nunca seria verdadeiramente feliz. Ela sempre estaria em busca de algo que não
tinha. Ou pior, de algo que não poderia ter. Como agora.
— Entendo que você seja assim — ele disse, em seu tom sempre grave. — Teria acontecido
cedo ou tarde. Ambos sabíamos.
“Mas e quanto a eles?”
Khalmyr apontou com o olhar, de uma forma que apenas deuses podem, para além dos
limites de seu reino. Para o Plano Material, onde estava Arton. Para as vastas nações que prosperavam
e guerreavam no continente sul, ainda populoso e civilizado naquela época.
— Por que fazê-los assim? Por que precisam passar pela mesma angústia, o mesmo martírio?
— Olhe para eles, Khalmyr — ela disse quase ofegante, soltando os braços, os olhos cheios
de orgulho. — São indomáveis. Conquistadores. Invencíveis.
— As crias de Megalokk também eram. Tivemos que contê-las.
— Não creio! — a deusa vociferou, em tom de revolta. — Como pode compará-los a
monstros? Não acredito que não consiga ver a diferença!
— Ah, mas eu vejo a diferença.
E desta vez Valkaria ficou surpresa, pois havia compaixão na voz de Khamlyr.
— Eles não são maus. Não são cruéis. Eles temem o desconhecido, mas mesmo assim o
enfrentam. Eles aprendem com seus erros, mas não cessam de cometê-los. Contagiam os outros
com sua energia. Têm vidas curtas, mas intensas. Não importa o que aconteça, nunca deixam de
ser eles mesmos — mesmo sem saber quem são eles mesmos. Pois não existe o humano perfeito.
“Incrível. Uma raça que nunca será perfeita, mas mesmo assim nunca desiste de tentar.
Admiráveis, esses humanos. De todas, Valkaria, não pensei que seria você a mãe da raça dominante.
Mas agora parece tão lógico...”
— Você... os admira?! — sussurrou ela, incrédula. — Eu não fazia idéia...
— Eu os admiro, sim. Mas também lamento por eles.
“Você os fez à sua imagem. São eternos descontentes. Mesmo com a conquista do mundo,
não vão descansar. Mesmo com a soberania sobre as outras raças, não vão parar. E nunca, nunca vão
encontrar a felicidade verdadeira. Nunca vão conhecer a realização. Sua jornada nunca terá fim.”
— Lin-Wu costuma dizer que o importante não é o destino, mas sim a jornada — ela disse,
orgulhosa de como o Deus Samurai também acolheu os humanos como seus eleitos, e fez deles
um povo de honra.
— Justamente! Uma jornada de desejos irrealizados, de anseios nunca satisfeitos. Não
acha isso cruel? Fazer com que os mortais sofram como você sofre?
Valkaria sorriu suave, sentindo o peito aquecido. Por alguma razão, era confortador saber
que Khalmyr não tinha todas as respostas. Ele não entendia todas as coisas.
— É assim que você me vê? Acha que estou sempre infeliz? Que sou algum tipo de eterna
amaldiçoada?
A deusa tocou o rosto rígido de Khalmyr, sentindo uma estranha e inadequada piedade.
Nem parecia ser ela prestes a receber o castigo divino.
— Seus dois parceiros serão afastados do Panteão para sempre — ele disse, como se lendo
a mente de Valkaria. — Outros dois vão ascender para tomar seus lugares. Mas você não terá o
mesmo fim.
— Não...? — espantou-se outra vez a deusa.
— Os humanos não merecem pagar pelo crime de sua criadora. Eles já sofrem o bastante,
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não serei eu a impingir-lhes mais tristeza. No entanto, deve ainda haver castigo.
“Você diz que os humanos são movidos pelo desejo. São movidos pela busca, pela jornada.
Pois que eles tenham uma busca. Um desafio. E quando esse desafio for vencido, você estará livre
para retornar.”
De alguma forma, naquele momento, cada ser humano em Arton podia sentir um estranho
entusiasmo enquanto Khalmyr explicava as regras e Valkaria ouvia com excitação crescente.
— Você será transformada em pedra. Aprisionada na forma de uma grande estátua, em
meio ao desolado continente norte. No coração do colosso, haverá um labirinto. O mais perigoso
labirinto jamais pisado por mortais. Cada membro do Panteão — incluindo você e eu — contribuirá
com seus próprios desafios.
Havia ainda uma série de outras regras, como o fato de que Valkaria não seria mais reconhecida
ou lembrada em áreas distantes da estátua; seus clérigos e paladinos teriam seus poderes
reduzidos; e também o próprio segredo do desafio, conhecido apenas pelo sumo-sacerdote da
deusa. Mas nada daquilo importava. Quanto maiores as dificuldades, quanto mais obstáculos
Khalmyr apresentava, mais a deusa brilhava de emoção.
— Tem certeza de que entendeu? — o Deus da Justiça sabia não ser correta uma reação tão
feliz diante do que estava por vir.
— Sim! Claro que sim! Você está colocando meu destino... minha vida... nas mãos deles!
— Não está preocupada?
— Como poderia?! Como, se agora tenho a certeza total de que serei salva?
— Como pode ter essa certeza?
— Porque confio neles! Foram feitos assim. Feitos para nunca desistir. Feitos para superar
qualquer coisa, não importa quão difícil seja.
— Levará muito tempo.
— Esperarei. De joelhos. Clamando por sua ajuda.
— Em geral os devotos oram aos deuses pela salvação. O contrário não é comum.
— Eles não são um povo comum.
Sem mais nada a dizer, Khalmyr sacou a espada Rhumnam. Valkaria recuou, assustada:
mesmo com a confiança que tinha na própria salvação, o castigo não era fácil de enfrentar.
A deusa chorou. Suas lágrimas caíram em diversos pontos de Arton.
— Olhará por eles até minha volta? — pediu.
— Sim. Tem minha palavra.
— Então estou pronta.
Deu as costas a Khalmyr, pousando as mãos trêmulas na sacada, e esperou pelo golpe. A
espada riscou no ar um arco perfeito de luz, mas parou no meio do caminho. Khalmyr sentiu que
a deusa condenada ainda tinha algo a dizer.
— Haverá, sim, um fim para a jornada.
“Os outros deuses querem a adoração e admiração de seus povos. Querem que seus devotos
sejam iguais a eles. Mas eu, Khalmyr, não quero os humanos se ajoelhem para mim. Não quero
que sejam iguais a mim.”
“Quero que sejam MELHORES que eu.”
“Melhores que NÓS.”
E nesse instante, fitando seu carrasco com o rabo dos olhos, acrescentou:
— Eu criei os humanos para que superem os deuses.
A espada terminou sua jornada.
Mas a jornada humana apenas começava."

A libertação de Valkaria.edirota jambo

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